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quarta-feira, 1 de abril de 2015

Nightcrawler: a violência gráfica das notícias existe porque nós a vemos.. ou estarei errada?




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Ver Jake Gyllenhaal a fazer de psicopata armado em repórter da 'vida real'  (de forma brilhante, já agora) é muito perturbador. Ele filma sangue e mais sangue e filma-o sem pingo de emoção. Pois, já sei, Nightcrawler é um filme, nada daquilo é real, etc e tal, mas se não é podia ser. Quer dizer, basta olhar à nossa volta e ver como as personalidades psicopatas andam por todo o lado - e não, não é preciso ser um serial killer para ascender a essa condição, estamos apenas a ser induzidos em erro por séries como Mentes Criminosas, Os Seguidores ou Hannibal.

A incapacidade de sentir empatia pelo outro ser humano é muito mais comum do que pensamos. Isso é, em muitos casos, o segredo para o sucesso e não para a prisão. Não é apenas no caso da personagem interpretada por Jake que sentir pena, compaixão ou amor se revelam graves entraves à obtenção do que se convencionou chamar sucesso.Louis Bloom , a personagem principal de Nightcrawler, é fixado nos seus objectivos, que passam de passar de um ladrão de meia tijela para se tornar num magnata de conteúdos vídeos do mais gráficos que pode haver, numa corrida a raptos, carjacking, triplos homicídios, violações, incêndios, tiroteios, medidos pela quantidade de sangue despendida pelas vítimas e pela proximidade da câmara sobre os cadáveres. O facto de ele não sentir qualquer tipo de escrúpulo - mas mesmo nenhum - dá-lhe no final vantagem sobre os já poucos escrupulosos competidores, que acabam por tornar objecto de notícia, ou seja, vítimas do seu próprio veneno (sim, Louis dá-lhes tratamento especial).

Ora o que não faltam por aí são casos desses, nomeadamente no meio político. A falta de empatia pelo outro leva os membros dessa classe profissional a, sem pestanejar, enveredar por um percurso que visa o sucesso – pelo menos, o que eles entendem como sucesso - sendo que o preço a pagar é pago pelos outros, chamando-se em muitos casos pobreza mesmo, da real, não da fictícia. Porém essa vertente do seu trabalho é completamente esquecido pela forma obcecada como alguns políticos se focam no seu sucesso pessoal e profissional, que passa por estarem nas boas graças de uns senhores que falam alemão ou das administrações de grandes empresas para onde vão trabalhar a seguir a terem, supostamente, trabalhado para o "bem público”.

Mas há mais: há o director que nem sabe o nome de quem trabalha sob as suas ordens e que recebe milhares de euros por mês, alimentado por quem ganha o salário mínimo e tem de contar os tostões para pagar as contas mais básicas, há o funcionário que responde torto ao reformado porque não tem paciência para velhos, há o médico que adia o parto para o turno seguinte porque é sexta à noite e não quer ter trabalho ou que faz o diagnóstico a dois metros de distância do paciente, como se este tivesse lepra, há o empregado bancário que se derrete para o engravatado e que olha com desdém para o outro, modestamente vestido, há o condutor que abre a janela, chama nomes, vai atrás, ameaça bater porque não arrancámos mal o sinal ficou verde. No final do dia, vão para casa e são excelentes pais e maridos e amigos. Porém, não há algo de errado em quem só é capaz de se conectar com ‘os seus’? Não há algo perturbante quando os outros são colocados do outro lado do vidro, como peixes num aquário, e que se lixem que não tenho de pensar nisso? Não há algo de errado numa sociedade em que o individualismo e o sucesso são apresentados como valores essenciais? Mas mais ainda: numa sociedade de homens e mulheres (e adolescentes) que retira prazer em que aquelas mesmas imagens de violência  que Louis Bloom filma sem um pingo de emoção? Louis Bloom existe porque existe uma multidão ávida por consumir violência. E o que é que tudo isso faz de nós a não ser não pequenos psicopatas nos nossos pequenos mundos, entretidos a ver a tragédia alheia e a achar que aquilo é tão bom porque só acontece aos outros?

Bem, seja como for, Nightcrawler é um grande filme.

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